quarta-feira, 28 de maio de 2008
Jaleco Branco
Pronto Socorro do Hospital de Base
Haragano · Brasília (DF) · 15/2/2007 22:27
Segundo dia. 09:25. Sala de espera. Raio-x e tomografia. Mais de 10 pessoas sentadas, a maioria mulheres (jovens, maduras, velhas). Uma maca atravessada, lençol branco ensangüentado, corpo inteiramente coberto, inclusive o rosto. Chego empurrando a maca do meu filho, braço e perna engessados. Põe a maca do lado da outra, ordena um Jaleco Branco. Faço que não ouço, entro na saleta “recepção” e pergunto baixinho se ali naquela maca tem um morto. Jaleco Branco ri, imagina, ele cobriu a cabeça porque quis. Estaciono a maca no local determinado. Vão sendo chamados os nomes, vão chegando mais e mais pessoas e sendo chamados e eu e o guri na espera, sem achar ruim, afinal, o caso dos outros de certo é mais grave, etc. De vez em quando chega alguém empurrando uma maca, mais um estropiado, que se há de fazer. Esperei duas horas, toda a torcida do flamengo fez raio-x e tomografia, aí eu comecei a pedir que chamassem o meu filho, mas eles não dão atenção, atarefados. O acidente ainda era recente, eu muito abalado, entrei na recepção quase chorando, moça, por que não chamam o meu filho? A funcionária espantada de ainda estarmos ali, vai verificar apressada e logo chamam. Não vou contar que quando voltamos com as chapas o médico que as solicitara não se encontrava (como dizem as secretárias), nem vou dizer que ninguém sabia se tinha ido embora, ou se voltaria logo, ou mesmo se estaria em algum lugar do hospital. Na verdade, só quero contar duas historinhas da recepção do raio-x. Uma se chama “Paulo Ferreira” e a outra não tem título. Chamam que chamam Paulo Ferreira e ninguém responde e passam para o próximo. Logo apregoam novamente Paulo Ferreira, até aos berros, sempre sem resposta. Então continuam a chamar o próximo. O tempo passa e algo se move debaixo do lençol ensangüentado (ao lado do meu filho, lembra?) e julgo ouvir um gemido. Então levanto a pontinha do lençol e uma boca arrebentada quer dizer algo, aproximo o ouvido, Paulo Ferreira sou eu. Corro lá dentro e aviso e já recebo uma ordem de um Jaleco Branco, então pode trazer, e eu, bem mandado, prontamente, volto empurrando a maca do infeliz. Perguntei se queria que eu avisasse alguém, sou sozinho no mundo, só eu e Deus, respondeu. Não o vi mais, oxalá não tenha ido encontrar seu Único Amigo. A história sem título começa com um Jaleco Branco empurrando aos trancos e barrancos uma maca com um motoqueiro imobilizado. Parêntesis: Jalecos Brancos não sabem empurrar macas. Eles vão dando porrada no que houver pela frente e pelos lados. Em compensação, Acompanhantes empurram macas corretamente, desviam e são solidários, de maneira que se um Acompanhante tem dificuldade como motorneiro, outro vem sempre em socorro. Dentro do parêntesis: Jalecos Brancos nunca ajudam acompanhantes (raramente ajudam Pacientes). Acho que é uma questão de princípio para a equipe alva, mas não tenho certeza. Volto para minha história sem título. O motoqueiro imobilizado sobre a maca, no meio da sala, o macacão arriado até os joelhos, um saco coletor amarrado no pênis, exposto diante de moças, senhoras, jovens e velhas. Eu, recém convertido em Acompanhante, ao notar que o motoqueiro desacordado está sendo desumanamente exposto por um Jaleco Branco, que, lógico, já deu no pé, apanho o lençol que está enrolado sobre a maca, repito, o lençol está enrolado sobre a maca, e o estendo da cintura para baixo do desmaiado.
Forte e sincero agradecimento: http://www.overmundo.com.br/banco/pronto-socorro-do-hospital-de-base
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3 comentários:
E o pior...
Acontece todo dia!
Fant�stica a foto das duas pessoas no banquinho. Retrata bem o esp�rito da coisa: filme de terror. J� passei v�rias noites na enfermaria do Hospital de Base, acompanhando minha av� que tinha quebrado o f�mur e foi operada l�. Vi coisas inacredit�veis. � como o texto diz: os m�dicos d�o medo, nem parecem gente; com as enfermeiras e enfermeiros a coisa melhora um pouco, dependendo da pessoa, do dia, do humor, do acaso; nos acompanhantes a gente pode confiar, com eles a gente pode contar, s�o pessoas simples, humildes e solid�rias. Pena que a maioria ou j� desistiu de lutar pelo direito a um atendimento decente ou ainda nem percebeu que tem esse direito.
As fotos estão muito boas. Eu mesmo já recorri a esse pronto-socorro várias vezes e vivenciei o descaso. Só acho meio questionável esquecer de mencionar que o texto que denuncia o hospital foi classificado como ficção pelo autor. Isso pode induzir ao erro do leitor, já q somente aqueles q seguirem o link poderão ter essa informação.
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